Quase 400 anos antes que desenhasse o Homem vitruviano, a celebre representação das proporções ideais do corpo humano que demonstra como ele poderia ser harmoniosamente inscrito nas figuras do círculo e do quadrado,Hildegard von Bingen havia levantado a hipótese do homem sinfônico.
A reportagem é de Marcello Filotei, publicada no jornal do Vaticano, L’Osservatore Romano, 09-09-2010. A tradução é de Benno Dischinger.
O que para Leonardo será a geometria, para a santa eram a música e a poesia. A alma humana é de fato composta, para Hildegard, de diversos elementos que se encontram coordenados, harmonizados e se fundem uma espécie de sinfonia, entendida como um todo coerente. Esta união se exprime tanto na relação harmoniosa entre mente e corpo, como no próprio ato de compor. A música é para Hildegard terrestre e celeste ao mesmo tempo: feita com meios humanos para evocar, ao menos por um momento, a consonância celeste.
Até a idade de 40 anos, todavia, a santa não se sentiu inclinada a escrever poesia litúrgica e música. Mas, bastaram-lhe poucos anos de atividade para obter os primeiros reconhecimentos. Pouco mais de uma década após o início de sua “carreira artística”, chegaram, de fato, as primeiras apreciações: foi um mestre parisiense de nome Odo que em 1148 louvou a originalidade de suas canções.
E, de fato, na lírica européia da Idade Média Hildegard fala uma língua insólita. Evidentemente conhece bem a linguagem figurada do amor místico, mas também usa relações simbólicas criadas pelos Padres da Igreja e usa em abundância metáforas para conferir os traços de esposa do Cordeiro de Deus, tanto à Ecclesia quanto a uma virgem mártir. O ponto de partida de seu pensamento teológico e, portanto, poético e musical, é o de ver em Maria a redentora da culpa de Eva.
Trabalhando sobre as imagens correlatas a este conceito cria andamentos de rapsódia, útil instrumento para abandonar-se às alegrias da liberdade poética. Não se preocupa demasiado em respeitar as rígidas formas da linguagem tradicional, mas deixa-se fascinar por audazes metáforas e, em particular, usa com insistência a forma retórica da anáfora, repetindo o início de frases com hipnótica insistência. A santa usa abundantemente superlativos e exclamações, mas tudo é sempre jogado sobre o fio do simbolismo: patriarcas e profetas aparecem como raízes de um pequeno fruto fecundo.
Sua linguagem musical e poética recorre prazerosamente a efeitos particulares quando não abertamente violentos, refutando os estilemas polidos, em voga entre os seus contemporâneos. Isto permite-lhe garantir certa autonomia da música em relação ao texto, que é sempre de sustentação, mas não é a única fonte da qual se deduz o andamento melódico. E também é por isso que Hildegard também escreveu composições instrumentais.
Sempre pronta a louvar Deus com a harpa da profunda submissão e com a cítara do canto doce como o mel, com o instrumento de corda da redenção da humanidade e com a charamela [cornamusa italiana, ndt] da proteção divina (cf. Scivias, 13, iii, comentário ao salmo 150). Irreverente, a ponto de enfrentar diretamente um imperador, não renunciou à tendência de sublinhar o papel fundamental da mulher na Igreja; em sua coletânea Symphonia harmoniae caelestium revelationum, na qual já se acena desde o título à origem divina de sua inspiração, os cantos dedicados às grandes figuras do panteão cristão reservam uma atenção toda particular às figuras femininas, entre as quais se destacam a Virgem Maria e santa Úrsula.
A visão de Hildegard era toda esférica, como acontecia com freqüência na Idade Média: fé e poesia eram as duas faces da mesma medalha, a música o colante necessário.